86S3kuextR2S3YWJ_kx2UbklxpY

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Varejo: a crise trouxe o futuro


Se há um efeito benéfico na crise que assolou o varejo brasileiro nos últimos dois anos, é forçar as companhias a, enfim, sair de século 20. Uma das mudanças mais nítidas é a materialização de um conceito defendido há pelos menos cinco anos por consultores de varejo — o fim das barreiras entre os canais de venda. Outra é criar espaços que tragam uma “experiência da marca”. Pode parecer discurso de vendedor, mas o fato é que as empresas que adotam essas novidades têm conseguido resultados promissores.
“Num momento no qual os bolsos estão mais vazios, as lojas perderam sua atratividade. Sem ter como gastar, muitos consumidores simplesmente deixaram de frequentá-las. Uma alternativa encontrada foi a de atrair o cliente pela experiência, por um ‘algo a mais’ que ele encontra sem que necessariamente precise gastar para usufruir”, diz Lyana Bittencourt, diretora da consultoria de varejo Bittencourt.
Um dos exemplos mais marcantes é a grife carioca Reserva, que tem 66 lojas no Brasil e está presente ainda em 1.400 lojas multimarcas. Criada há dez anos, a companhia vem lançando novas ferramentas para permitir que as operações online e offline funcionem, de fato, como um coisa só. A Reserva tem um e-commerce que atende as vendas online e off-line, o que permite criar lojas sem estoque. O cliente pode comprar pela internet, inclusive dentro da própria loja, experimentar a roupa e receber a peça em cinco horas no endereço que desejar.
Além de ter cada vez menos estoque, as lojas estão se transformando em espaços de convivência para os clientes. A do aeroporto Santos Dumont, por exemplo, tem uma área vip para os clientes com comida, bebida e barbearia; a do bairro dos Jardins, em São Paulo, tem um espaço de co-working. Na unidade do shopping Fashion Mall, no Rio, há uma barbearia, espaço para jogar videogame e um restaurante de comida saudável, o Verdin. Nas araras, apenas uma peça de cada tamanho (P, M,G e GG), apenas para o cliente provar, já que a compra é feita online, por meio de tablets ou totens. “É um espaço para as pessoas se encontrarem e se divertirem, onde os amigos vão para relaxar, beber uma cerveja e até comprar roupas”, diz Rony Meisler, fundador da marca.
A Reserva pretende implantar o modelo de loja conceito em cerca de 10 unidades da rede nos próximos meses. Em 45 dias de operação, o crescimento das vendas foi da ordem de 70%. As inovações vêm permitindo à Reserva traçar objetivos ambiciosos: a meta é faturar 350 milhões de reais em 2017, 35% acima dos 260 milhões de reais de 2016.
A ordem é que o varejo precisa investir em tecnologias que permitam uma interação em tempo real com o cliente e que possibilitem unir o melhor do varejo tradicional – o toque, a percepção, a experimentação – com a praticidade do varejo virtual, que adota promoções personalizadas, redução de burocracia no processo de compra, agilidade, ausência de filas. Pesquisa divulgada pela consultoria Deloitte revela que 1,8 trilhão de dólares de vendas do varejo mundial já são impactados pelas lojas online, o que reformula as expectativas do varejo físico.
“As pessoas não vão mais à loja física porque precisam comprar, mas porque querem se dirigir até lá”, afirma Alberto Serrentino, fundador da Varese Retail Strategy, consultoria especializada em varejo. “As motivações para visitar e comprar em lojas físicas vão além das necessidades e envolvem informação, educação, interação social, inspiração, prazer e emoção”.
A Beleza na Web, um dos maiores e-commerces de beleza do país, com vendas acima de 200 milhões de reais no ano passado, abriu em março sua primeira loja física. Instalada no bairro de Moema, em São Paulo, a loja tem 278 marcas e 15.000 produtos, numa oferta similar à do site. “Trata-se de uma extensão do mundo virtual, onde o cliente pode tocar os produtos e obter mais informações via realidade aumentada. Basta baixar o aplicativo e aproximar o celular do produto, além de usufruir das mesmas promoções do site em tempo real”, diz o fundador da empresa, Alexandre Seródio.
Também é possível comprar na loja física e receber os produtos em casa ou comprar online e retirar na loja. “O canal tem de se moldar em função do cliente e não o inverso”, afirma o empresário. “Temos ainda muito o que aprender com o varejo físico, mas temos a certeza de que o modelo de loja será multiplicado.”
A lógica de integrar canais vale também para a varejista com mais pontos de venda no Brasil, a rede de perfumaria e cosméticos Boticário. Em cinco lojas piloto da marca, as vendedoras, equipadas com smartphones, oferecem mais opções de compra, promoções e informações sobre os produtos aos clientes. O sistema também permite o recebimento de pagamentos e está integrado ao programa de fidelidade da marca, o que ajuda a reduzir as filas e atende às expectativas dos nativos digitais. A meta é que mil lojas, das mais de três mil que compõem a rede, trabalhem com o dispositivo até 2018.
Com o objetivo de testar o novo modelo, a Paquetá Calçados inaugurou em abril de 2016, no Shopping Iguatemi de Porto Alegre, sua primeira loja de baixo atrito, com apenas um caixa, exclusivo para pagamentos em dinheiro vivo. “A ideia era disponibilizar todas as tecnologias que tendem a permear o varejo em um futuro próximo e centralizar o processo de compra nas mãos dos vendedores”, afirma Marcos Vinicius Ravazzoli, diretor geral de varejo do Grupo Paquetá.
É na tela do smartphone que o vendedor consulta o estoque, registra o pedido do cliente e finaliza a compra com pagamento via cartão de débito ou crédito. “Embora tenhamos mantido um caixa para transações em dinheiro, 90% das operações são feitas pelos vendedores, inclusive as que envolvem crédito pelo cartão de marca própria”, afirma o executivo. “O índice de conversão de venda subiu 20% com a nova proposta”. A meta é expandir o modelo de diminuição dos caixas para mais três unidades e, a partir de 2018, para as 35 lojas da rede.
É a estratégia popularizada pelas lojas da Apple mundo afora, enfim, chegando à mão dos varejistas brasileiros. Um exemplo limite, lá fora, é a Nike. Inaugurada em novembro de 2016, no bairro do SoHo, em Nova York, a nova loja conceito reúne em 5.000 metros quadrados, distribuídos em cinco pavimentos, diversão, tecnologia, experiência e esportes. No lugar dos caixas convencionais, espaços para a prática de esportes, onde os clientes podem testar o produto com a ajuda da realidade virtual em esteiras, quadra de basquete, campo de futebol.
A mudança para este modelo de lojas, no Brasil, esbarra em uma série de fatores, como o apego ao pagamento em dinheiro em alguns setores e também o maior custo de implantação das lojas. “Uma grande barreira está nos aspectos fiscais e tributários, que diferem de estado para estado e até de cidade para cidade. Tamanha disparidade exige uma adaptação das ferramentas e, consequentemente, impacta no custo de sua implantação”, diz Marcos Gouvêa de Souza, diretor geral do grupo GS&MD, consultoria especializada em varejo. “Mas ninguém duvida da importância e da rapidez com que os novos modelos de pagamento digitais virarão rotina no dia a dia das pessoas”. Estamos, afinal, em 2017. O século 20 ficou para trás faz tempo.
 
Fonte: Revista Exame

Nenhum comentário:

Postar um comentário