Apenas 31 países no mundo têm população maior que essa, equivalente à da
Argentina ou à da soma dos habitantes da Dinamarca, da Finlândia, da Noruega, da
Irlanda, da Nova Zelândia e da Holanda.
Os efeitos da mudança são visíveis: a propaganda no Brasil vai mudando e
começa a não espelhar apenas brancos e ricos; grupos que só atendiam a classe
AAA lançam produtos mais populares; novelas da Globo, como "Cheias de Charme" e
"Avenida Brasil", colocam os emergentes no centro da trama, relegando os ricos
de berço a núcleos periféricos; vendedores vêm sendo treinados para não
desprezar um possível comprador só pela aparência.
"Os empresários perceberam que é essa classe média crescente que dará aos
negócios escala econômica. Com essa escala, é possível reduzir os custos e
ampliar o lucro", diz Celso Grisi, professor da FEA (Faculdade Economia e
Administração) da USP e diretor do Fractal Consult, instituto especializado em
análises de mercado.
Para o presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo),
Paulo Skaf, a indústria nacional só não se beneficiou ainda mais desse aumento
do mercado consumidor por causa do câmbio, que desviou o dinheiro da nova classe
média para produtos importados.
"Esse é um bom momento para que as empresas brasileiras possam não só ganhar
escala, mas ampliar sua especialização", afirma.
Aloísio Pinto, vice-presidente de planejamento da WMcCann, uma das principais
agências de publicidade do país, afirma que os publicitários tiveram que estudar
esse novo consumidor para entender o que ele quer.
"Ficou claro que aquele excesso de luxo, típico da propaganda do passado, não
funciona para essa nova classe C. Não basta apenas colocar uma pessoa famosa
para atraí-la, para fazê-la comprar. Esse novo público está mais esperto e
cínico para os velhos truques da publicidade. Ele valoriza muito grandes lições
de vida, histórias que mostram que quem se esforça é recompensado e que quem é
mau é punido."
Um bom exemplo está no ar atualmente. Não tem ator nem cantor famoso, mas uma
mãe e um filho, de aparência simples, que tomam um ônibus e um avião para chegar
à formatura do irmão, que cursou medicina. A fábula de que o esforço compensa é
usada para vender um cartão de crédito.
Em 2011, um anúncio feito pela Neo Gama para a Tim foi ambientado no Complexo
do Alemão, no Rio, e o foco estava nos moradores de favela, algo impensável há
alguns anos. A intenção era ampliar a venda de celulares com acesso à internet e
banda larga pré-paga.
A Tim é um exemplo da nova atitude empresarial. A empresa tem revendas nas
favelas cariocas e vendedores circulando nos trens suburbanos do Rio. Comprador
não falta, já que ter celular com acesso à internet sai bem mais barato que
frequentar lan houses.
MAIS EXIGENTE
Outras empresas preferem preservar suas marcas "premium" e lançar novas para
brigar pelo novo consumidor. No ano passado, por exemplo, o Grupo Fleury, cujos
laboratórios são exclusividade da classe AAA paulistana, montou uma nova rede
para atender as classes C e B em vários Estados.
Chama-se A+ e já possui 30 unidades na cidade de São Paulo e mais de 90 no
país. Muitas das unidades já pertenciam ao grupo, mas funcionavam com outras
bandeiras, sem o endosso explícito do Grupo Fleury. Agora, a marca famosa vem
junto ao logo da A+.
O presidente do grupo, Omar Hauache, afirma que o consumidor dessa nova
classe média emergente está cada vez mais exigente, e o grupo viu nessa mudança
a oportunidade para crescer.
"Essas pessoas entraram no mercado formal de trabalho e passaram a ter acesso
a planos de saúde corporativo, que representam 70% de nosso faturamento. Elas
perceberam que poderiam ter acesso a mais qualidade." O A+ teve, no primeiro
trimestre deste ano, um crescimento de 15% em suas receitas, mesmo índice
registrado pelos laboratórios da bandeira Fleury.
Abundam outros exemplos. No setor de academias de ginástica, por exemplo, a
Bodytech ressuscitou a marca Fórmula, que agora tem unidades e preços menores. A
Bio Ritmo lançou a Smart Fit, que não oferece aulas, apenas os aparelhos, em
troca de mensalidades mais baixas. A Kopenhagen criou a Brasil Cacau, com
produtos até 80% mais baratos que os da marca-mãe.
A rede de salões de beleza Jacques Jannine, que sempre focou as classes mais
altas, criou a Basic Beauty, mais popular. A primeira unidade fica no Mais
Shopping Largo 13, em Santo Amaro (zona sul de São Paulo).
Enquanto o corte e a lavagem de um cabelo feminino, no mesmo salão, mas nos
Jardins, custam juntos R$ 135, no Basic Beauty, de Santo Amaro, o serviço sai
por R$ 40 --70% a menos.
MARCAS DE COMBATE
O mercado chama essas linhas mais populares de "marcas de combate". Você
mantém os produtos "premium", para uma elite que pode pagar mais, e cria uma
linha diferente para disputar um novo consumidor, que já supriu suas
necessidades mais básicas e vai em busca de qualidade.
"As ascensões dentro da classe média explicam o sucesso dessas empreitadas.
Num primeiro momento, a pessoa sobe das classes D e E para a C e passa a
consumir produtos básicos, como alimentação. Depois ela vai atrás de itens
aspiracionais [objetos de desejo] e paga mais por produtos com melhor
acabamento, mais bem apresentados", afirma Grisi.
O fenômeno chegou também ao elitizado mundo das editoras de livros, cuja
produção beirou os 500 milhões de exemplares em 2011, quase 200 milhões a mais
que em 2003.
A editora Cosac Naify, identificada com um público mais sofisticado, acabou
de criar uma coleção de bolso, com preços entre R$ 19,90 e R$ 24,90. Já a
Companhia das Letras lançou um novo selo em abril: a Paralela, que tem o
objetivo de trabalhar com tiragens altas e preços baixos. Matinas Suzuki Jr.,
diretor-executivo da editora, prefere não ligar o novo selo ao inchaço da classe
média.
"O que sabemos é que está crescendo o número de leitores mais jovens e do
sexo feminino, e que há uma demanda por livros mais baratos", diz. "Mas é um
equívoco atribuir isso ao acesso de pessoas à classe média. Esse processo ocorre
no mundo todo, não apenas no Brasil." Mas, já que o aumento do emprego e da
renda no Brasil vem acompanhado de maior escolarização básica e de
universitários, o que, em tese, tende a elevar a procura por livros, tudo pode
estar relacionado, não?
"Poder, pode", afirma Matinas. "Mas não temos como mensurar."
"O Sinal - O Santo Sudário e o Segredo da Ressurreição", título impensável no
catálogo da antiga Companhia das Letras, sai por R$ 24,90 na Livraria Cultura. O
recém-lançado "Cidade Aberta", de Teju Cole, em formato menor e com 200 páginas
a menos que "O Sinal", custa R$ 39,90.
Já que todos a querem, cabe a pergunta: quem é e o que quer essa nova classe
média brasileira?
A resposta varia, dependendo do interlocutor --e, se o mundo discorda sobre o
tema pelo menos desde o século 19, com marxistas puxando de um lado, weberianos
de outro, no Brasil não seria diferente.
A Secretaria de Assuntos Estratégicos da Previdência da República tentou
criar um critério oficial. Anunciou, no final de maio, que, para o governo
federal, está na classe média a pessoa que vive em uma família cuja renda mensal
per capita varia de R$ 291 a R$ 1.019. Ou seja, se a soma dos salários e
rendimentos de quatro pessoas de uma família superar R$ 1.164 por mês, todos
serão considerados de classe média.
Já para o Centro de Políticas Sociais da FGV do Rio, é de classe média a
pessoa que faz parte de uma família cuja renda total varia de R$ 1.200 a R$
5.174.
Márcio Pochmann, ex-presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada) e candidato do PT à Prefeitura de Campinas, fica de cabelo em pé
quando ouve essas cifras. Para ele, definir a classe média a partir da renda é
uma deturpação dos conceitos sociológicos --correto seria dizer que houve no
Brasil, nos últimos anos, um aumento da classe trabalhadora com a criação e
formalização de empregos.
"A grande maioria dos empregos criados foi de no máximo um salário mínimo e
meio, e no setor de serviços. No conceito de classe média, as pessoas estão em
carreiras em que o aumento da escolaridade aumenta também a renda. São
funcionários públicos, professores, bancários. Não é o que acontece no Brasil
agora. Se a pessoa é motorista de ônibus, não adianta fazer um pós-doutorado que
não terá um salário maior."
Para Pochmann, que acaba de lançar o livro "Nova Classe Média?" [Boitempo,
128 págs., R$ 36] --assim mesmo, com interrogação no final--, há, por trás
dessas classificações, componentes político-ideológicos.
"As reivindicações da classe média e da classe trabalhadora são muito
diferentes. Quem vai lutar pelo SUS (Sistema Único de Saúde), quem vai lutar
pela escola pública? Só a classe trabalhadora. A média vai brigar por reduções
no Imposto de Renda", afirma.
Isso, segundo ele, influencia na definição de políticas públicas e alimenta a
discussão sobre o tamanho e as incumbências do Estado: maiores, em que a classe
trabalhadora é maior, ou menores, em que a classe média é maioritária.
CRITÉRIO BRASIL
Para o sociólogo Amaury de Souza, coautor, com Bolívar Lamounier, de "A
Classe Média Brasileira: Ambições, Valores e Projetos de Sociedade" [Campus, 192
págs., R$ 52,90], essa é uma discussão estéril e ultrapassada. Para ele, termos
como classe operária ou trabalhadora não têm sentido no século 21.
"No século 19, quando Marx falava de classe trabalhadora, referia-se àqueles
que apenas tinham sua força de trabalho para vender. E esse força era muscular.
Isso tudo mudou. Nem no agronegócio a força muscular é mais importante. A
questão é o cérebro, a qualificação." Amaury diz que os conceitos mais bem
compreendidos no mundo todo atualmente são os que separam a classe média dos
pobres.
"A discussão relevante é sobre a permanência dessas pessoas que ascenderam à
classe média. Temos que analisar qual o risco de elas voltarem a ser pobres.
Isso vale para o Brasil e para o mundo, porque o crescimento da classe média é
mundial e é um efeito da globalização."
Os recém-chegados à classe média correriam mais riscos de deixá-la que os
mais antigos porque, em geral, têm menos patrimônio, pouca escolaridade e pouco
capital social, que é uma rede de amigos ou familiares com condições de ajudar
em caso de dificuldades.
A discussão não fica apenas no campo político/sociológico. Acontece também
entre aqueles que precisam definir como anunciar para atrair o consumidor A ou o
B. A Abep (Associação Brasileira das Empresas de Pesquisa), que municia o
mercado publicitário, está em busca de uma melhor definição econômica e social
do brasileiro.
A associação utiliza hoje o chamado Critério Brasil, que combina itens como a
posse de determinados bens (como TVs ou automóveis), estrutura da moradia
(número de banheiros), presença de empregados na casa e o nível educacional do
chefe da família. A população é, então, dividida em classes: A1 e A2; B1 e B2;
C1 e C2; D e E. Mas há uma busca por entender melhor a classe A (pequena e muito
heterogênea) e a C (enorme e também muito heterogênea).
Os professores Wagner Kamakura (da Universidade Duke, nos EUA) e José Afonso
Mazzon (da USP) estão ajudando a Abep na busca de um novo critério. Eles
acreditam que, para traçar um bom perfil de classe, é melhor analisar a maneira
como a pessoa gasta do que os bens que possui.
Pelo mundo, há vários modelos de classificação, com inclusão de status
profissional, grau de
escolaridade e até aparência interna e externa da moradia.
Na Alemanha e no Japão, por exemplo, a ocupação do chefe da família é um fator
determinante. Em outros países europeus, conta também quantos anos de estudo
essa pessoa possui.
Agências de publicidade como a WMcCann trabalham com critérios próprios. O
que importa, no caso, é o comportamento do consumidor. Eles dividem a classe
média em dois grupos. O maior lembra a população mais endinheirada dos anos
1980, quando adquirir bens significava status.
O outro grupo é chamado de "C Beta". Esse está mais próximo de uma tendência
moderna, de consumo consciente, com preocupações ecológicas, por exemplo. Se as
classificações diferem, muitos dos desejos coincidem, e pesquisas mostram que a
nova classe média se aproxima da velha.
Questionados sobre o que querem conquistar, seus membros elencam: uma casa
para morar; uma casa para obter renda (aluguel); uma aplicação financeira; uma
boa aposentadoria. O desejo de consumir é forte, principalmente entre os
recém-chegados, mas aparece também o desejo de poupar e investir na educação,
principalmente dos filhos.
AMBIÇÃO
"Essa nova classe média é ambiciosa, empreendedora", afirma Amaury de Souza.
"Quer enriquecer e depender menos do Estado. Um dado bem positivo é que ela sabe
quão importante é a educação e está investindo nisso."
Alheia a toda essa discussão, Claudete Duarte, 24, autointitulada feliz
pertencente à classe média, olhava vitrines na hora do almoço no Mais Shopping
Largo 13, em Santo Amaro, numa tarde de maio. Inaugurado há pouco mais de um ano
e meio, o centro de compras é um clássico exemplo de empreendimento para os
recém-ingressados na classe média.
Quase a totalidade das lojas é pequena (de 12 a 25 metros quadrados) e tem
decoração simples.São boxes de vidro, cheios de prateleiras móveis, cujo aluguel
varia de R$ 3.800 a R$ 7.000 mensais.
Os sonhos dos emergentes estão lá: um quiosque expõe apartamentos à venda
pela construtora MRV, especializada em habitações populares. Outro oferece
panfletos da Unip (Universidade Paulista), um dos maiores grupos educacionais do
país, com mais de 200 mil matriculados.
Com pais que não completaram o ensino fundamental, Claudete estuda
administração em outra universidade, a Uninove, cujo campus na região foi
inaugurado em 2008. Ela diz que sua vida melhorou muito nos últimos anos, e
espera mais. Afirma que já teve sua fase consumista, mas conseguiu escapar de um
mal cada vez mais comum entre brasileiros, o endividamento.
"Sei o que é ser pobre, bem pobre, e espero conhecer o que é ser rica. Nem
precisa ser muito rica, um pouco rica já está bom. Daquele jeito que não precisa
pensar muito em dinheiro, sabe?"
Indústria, comércio e os demais setores da economia, por interesses próprios,
torcem por ela.
Fonte: Jornal de Floripa On line |
quarta-feira, 18 de julho de 2012
Todos querem tirar a nova classe média para dançar
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